Meu tio Paulo foi hospitalizado, entubado, diálise e o cacete. Um dia, sentado, falando, mas com tosse; no outro, dormiu sedado pra nunca mais voltar. Sentei no sofá da minha sala e comecei a escrever — nessas horas, só o papel e a caneta me salvam. Parei pra chorar. Quanto mais eu me lembrava dele, mais o volume de água e som aumentavam.
No dia seguinte, peguei um ônibus e fui ao Rio. Eu queria dizer obrigada, queria dizer vá com Deus, queria estar com minha tia, queria olhar pra ele longamente e me fazer reconhecida por tudo que ele fez por mim, pela família, pelas festas, fotos, vinhos, encontros, papos — sempre fungando o nariz e com os olhos meio fechados.
Durante minha estadia em sua casa, molhei suas plantas, olhei a coleção de mini carrinhos ao lado das bonequinhas da tia Suzete. Dormi do lado direito da cama, vi suas orações na mesinha de cabeceira, suas roupas milimetricamente arrumadas, aguardando por você. Durante esse período em que fiquei lá, duas coisas piscaram pra mim: uma foram seus sapatos no chão, ao lado do leito, que não sabiam que não seriam mais usados. Outra coisa marcante foram as fotos do rolo do seu celular. Sou fotógrafa, sou olhadora do olhar alheio, tenho curiosidade sobre e ensino sobre modos de ver a vida.
Minha tia disse que tinham fotos bestas. Eu ri. Suas fotos eram você. Não selfies. Tinham plantas, flores, borboletas e muitos, muitos projetos de arquitetura. Eu acho que, quando eu morrer, vão se lembrar que sou fotógrafa porque é intrínseco a mim — assim como você: arquiteto. Desenhista. Em março, eu fui na sua casa e você me mostrou o estudo de um terreno na pedra para construir um prédio na Rua Santa Clara. Eram muitas medidas e cálculos, e você mostrava pra mim, primeiro como se eu entendesse; segundo, com um entusiasmo infantil que eu quero ter pra sempre comigo. Então, suas fotos eram, na maioria, o seu dedo apontando para algo que queria deixar ali registrado: olha essa flor. Olha esse projeto. Olha isso. Olha a vida que só eu vejo. Seu dedo é igual ao do meu pai — sempre disse isso. Achei belíssima sua galeria de imagens.
Perceba que comecei o texto falando na terceira pessoa e, no parágrafo onde conto que estava na sua casa, mudei o pronome e vim conversar com você. Acho que já te escrevi muitas vezes desde que tudo começou, mas as palavras teimam em voltar. Acho que sei por quê: foi você quem mandou fazer um livrinho com minhas crônicas e me deu quando fiz 15 anos. Era você quem conversava comigo sobre a vida tantas e tantas vezes na sala da sua casa, enquanto entornávamos um vinho e víamos fotografias antigas.
Eu não consegui ler você. Não consegui conhecer profundamente. Você e meu pai são generosos e festeiros, mas reservados no coração — assim, de sopetão, é difícil entrar. Mas eu te enxerguei nas fotografias da sua câmera. Eu te vi nos projetos que me mostrou com os olhos brilhando. Vi ali o que vejo em mim, em alguns primos e tias: essa maneira apaixonada de ver a vida e suas delicadezas. Assim como meu pai, que ama a medicina, eu amo o que faço. E você, os rabiscos e cálculos...
Você, tio Paulo, era um projeto, obra e acabamento bem bonitos de um tio e padrinho que foi — e sempre será — muito importante pra mim.
Sabe que esse mês eu vou dar uma aula bem linda chamada Modos de Ver? E você estará comigo, ensinando tudo que aprendi nesses dias. Como o nosso modo de ver a vida, as situações e principalmente o ordinário do cotidiano é que nos torna uma pessoa muito, muito melhor. Suas fotos não eram bestas, até ri, elas eram ordinariamente perfeitas. OBRIGADA.
Modos de Ver - aula presencial dia 22 de junho, em SP, no meu ateliê na Vila Mariana de 9 às 14h. Para mais informações clica aqui.
Até breve, eu resolvi voltar :)
Carol
Que bom que você voltou! E sinto muito pelo tio Paulo S2!
Que bom te ver aqui, Carol! Sinto muito pela perda ♥️