Não lembro de ter reclamado quando me mudei para Brasília aos 5 anos de idade. Nem da escola nova, amigos, cerrado seco e ficar longe da vovó. Não lembro de ter achado estranho voltar pro Rio e logo depois ir, de novo, pra Brasília. Perdi as contas da quantidade de vezes que recomecei, rearrumei, reaprendi, reorganizei internamente minha nova realidade.
Aos quinze fui morar em Salvador e na vila militar tinha um amigo inconformado com as tantas mudanças dos pais e decidiu ficar com os avós de vez. Inconformada fiquei eu. Como assim morar com os avós? Minha vida era essa aqui, com meus pais e irmão e a cachorra Pimpolha e nós 5 íamos para todos os endereços e cidades juntos. Não tem essa de não querer, no máximo, eu estranhava, fica triste, mas não existia a ideia de não viver o que era pra ser vivido. E foi assim, pulando de DDD, casas, quartos, escolas, vizinhos, nomes de ruas, clima, temperatura e paisagens que eu trouxe pra minha vida a maior lição que eu poderia aprender sozinha: viver a minha realidade, trabalhar a minha realidade, melhorar a minha realidade, redescobrir a minha realidade, mas jamais, nunca, fugir dela.
De tanto ouvir que eu sou “muito real”, tenho puxado essa reflexão pro meu trabalho, seja ele fotografado ou escrito sem muito filosofar. Como transformar o nosso olhar sobre a realidade que temos, como enxergar o belo através da janela que nos mostra uma paisagem feia? É isso que eu faço. Eu enxergo o que não dá pra ser mudado mas dá pra ser transformado. Eu enxergo o que tem de bonito numa casa bagunçada, no que tem por trás das olheiras de noites em claro, nos pés descalços, nas crianças descabeladas. Exercer o nosso SER é de uma beleza gigante e, nem sempre, nossa paisagem interna é uma vista pro mar com um pôr do sol dourado. Bem capaz que nossa janela abra pro muro do vizinho, um mato ou um terreno baldio.
Nessas ocasiões sou à favor de jogar sementes pelos ares pra ver se brotam algumas flores, ou desenhar com tinta a parede que sufoca, sou à favor de transformar. Fazer uma faxina, jogar fora o que não importa, trazer o que nos falta. Era isso que eu fazia em cada quarto que dormi.
O que isso tem a ver com a fotografia? Pra mim tudo. Ela é o instante, o "só por hoje”. Só por hoje moro aqui, desse jeito, com essa família desse tamanho. Só por hoje tenho tristezas ou alegrias. Só por hoje estou exausta com meu filho bebê, só por hoje sofro o fim de uma relação, só por hoje faço 3 anos de idade, 50 anos. Só por hoje tenho cabelos curtos, brancos, rugas ao redor dos olhos.
Quando o “só por hoje” vira fotografia ele acaba virando um “pra sempre”. Meu trabalho é assim, a fotografia só faz sentido se for consoante a realidade. Sem filosofar o que é realidade, cada um sabe a sua, faz favor. Quero mostrar quem somos, onde estamos, com que rosto, com que corpo e com a certeza que nossa paisagem interna conta mais que as paredes que nos cercam.
Eu fotografo o bonito e o feio porque o feio tem a capacidade de nos transformar. E não existe nada que seja totalmente lindo e nem totalmente bizarro que não possa ser sentido de maneira diferente. Minha matéria prima para além da imagem é a realidade, a minha e a de cada um. Realidades não são boas nem ruins, são o que tem que ser. Guimarães Rosa nos disse que o que a vida quer da gente é coragem… tenho a sensação que ele falava sobre essa coragem de aceitar o nosso para depois pra transformar. Até porque, infelizmente, não da pra fugir pra casa da vovó como fez meu amigo de Salvador.
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Nossa, uma semana tentando juntar as ideias pra explicar isso aqui, espero ter conseguido!
Que texto difícil de escrever!
:)